É que já não lia nada de Burroughs há uns anos largos, e reviver a violência doentia daquelas linhas faz-me fechar abruptamente o livro, com mais força do que desejaria a soneira do resto das pessoas que vão no metro da Trindade até à Casa da Música. Há tempo suficiente que não visualizava, pela manhã, um miúdo de oito anos a fazer um broche a um velho nos cinquenta para conseguir um chuto de heroína marada.
Mas no "Cidades da Noite Vermelha" nem tudo me fez lamentar ter perdido o estômago literário e a ousada noção de relatividade da adolescência. Qual foi o meu espanto, quando ainda sorvia as primeiras dezenas de páginas, ao não encontrar nelas a desordem de sintaxe, da sequência, e do sentido a que Burroughs me habituara, mas, por sua vez, uma melíflua conciliação de módulos ficcionais que divergem entre si para depois convergirem numa narrativa de quilate superior - uma realidade ficcional - que tem (remotas) hipóteses de ser considerada romance.
Agora vou acabar de ler a merda do livro. O gajo escreveu muito bem, como poucos, mas era obviamente passado dos cornos. Também, à droga que mamava, não era para muito menos. Retirando a cartola, cometo a gentileza de vos presentear com uma passagem do livro, poética, mas, foda-se. Que a tradução não seja grande coisa, não é culpa minha. Além do mais tem direitos protegidos e eu não posso alterar o texto, não vá o diabo tecê-las.
(Para contextualizar: o narrador refere-se a drogas: ou enforcamentos que, no enredo, funcionam como drogas.)
"Tem todos os vendedores de cordas [de enforcamento] a fazer esteiras... e está a enviar vermelhos quentes e anjos brancos e queimaduras azuis e luzes negras e verdinhos... tudo. Depois mistura-lhes cantáridas e vende-os nas casas de putas de Ba'dan.
- Não há dúvida que é um empresário.
-Está a fazer subir os preços, o grande filho da puta.
-Será melhor que arranjemos uma boa reserva.
Caminhamos pelos bazares, apreçando o nitrito de amilo e os afrodisíacos coloridos. O preço quase duplicou, mas sabemos que em Ba'dan o material adulterado é vinte vezes mais caro.
Os vermelhos quentes provocam manchas e pontos vermelhos, retorcem o cu vermelho, fazendo uma comichão de rebentar, e pode-se arrumar a questão de vez com um chuto vermelho. Aqui a coisa pode-se tornar perigosa, provocando hemorragias internas ou, em certos casos, fractura expontânea das vértebras.
Os anjos brancos fazem a esporra luminosa. Um chuto de neve é uma labareda fria de luz branca com faúlhas sexuais quentes. A queimadura azul, que se costuma misturar com
yagé, é fria e quente ao mesmo tempo. Faz uma pessoa vir-se com um jacto azul de queimadura fria e um chuto azul é como cianita e ozono.
A luz negra põe uma pessoa negra como obsidiana e faz jorrar todas as palavras brancas do cérebro de tal maneira que se fica com todas as cenas sexuais que há, e um chuto negro põe em sincronia. O verdinho é algo entre animal e vegetal. Uma pessoa vem-se num jorro verde, os colhões ficam tensos de esporra e rebentam num chuto verde.
É possível misturar as cores - digamos vermelhos quentes com um chuto de neve, para obter campainhas de fogo cor-de-rosa, ressoando no céu enquanto se esporra um coro de anjos. Ora, o companheiro pode estar a fazer o mesmo ou pode estar a esporrar-se em crepúsculos de azul por águas-furtadas e silvos de combóios longínquos. Ou se toma quentes vermelhos e se suaviza com um chuto negro e ejacula púrpura-escuro. Uma velha glória tripla: vermelho fodendo azul, que fode branco, e o vermelho chuta azul, azul chuta branco e branco chuta vermelho.
É de experimentar o arco-íris especial - todas as cores numa - e esporrar cataratas Niágara, o pico Pikes, bilhetes postais, arco-íris e auroras bureais."
Fumem erva.