20 de dezembro de 2008

o retrato de.

I
basil hallward, um pintor cuja obra passaria despercebida ao resto do mundo caso, um dia, o destino não o tivesse feito cruzar-se com dorian, que se tornou o seu melhor amigo e a fonte de inspiração da melhor obra da sua vida - o retrato de dorian gray - cuja qualidade ultrapassou largamente tudo o que tinha pintado até então.

II
elefante violeta.

viro as tuas folhas ao contrário, não preciso de as ler para saber que estás presente.

então caminho. vagueio por onde caminho. disperso-me por onde vagueio.

há demasiadas promessas em cada rua.
caminho sobre sonhos; um atrás do outro, calcado, recalcado, ignorado, deixado para trás.

entro numa loja de clichés e deparo com uma frase tua na zona dos saldos.

levas-me à loucura nessa tua maneira demente de ser. abro a gaveta do meio, aquela com os remédios, pego na caixa que diz «para o caso de ela voltar». está vazia. merda.

nada a fazer. tombado sobre o chão, deixo correr o correr dos dias, imóvel e esvaziado de pensamentos - sou um vegetal.

e vegetando consolido, ganho raízes, ganho forma. um dia, ergo-me, por fim.

desço a minha própria montanha, misturo-me entre pessoas e venenos. vivo. olho no espelho, o reflexo é vazio de conteúdo mas sinto ter encontrado o mundo na palma da mão. sorrio, tal e qual nietzsche quando se achou super-homem, é agora uma certeza inquebrantável: enlouqueci.

nesse momento, sei que estou pronto a voltar. viro as folhas para a sua posição original. leio-te em cada linha, dou-te a mão no último ponto final.

nada mais a fazer. na saúde e na demência, amo-te.

agosto 2007.

III

basil espantou todos os seus amigos mais chegados quando confessou a vontade de não expôr a sua melhor obra em qualquer galeria, em qualquer lugar. apesar de o modelo ser dorian, o pintor acreditava que era sua própria alma que se encontrava retratada naquele quadro ou, nas suas palavras mais contidas, «aquele quadro contém muito de mim mesmo».

e assim foi. o quadro ficou, durante anos, tapado por um lençol, fechado num sotão, simultaneamente escondido e ignorado.

um dia, porém, ao se aperceber das mudanças na alma do seu melhor amigo e fonte de inspiração, ao ver até que ponto ele tinha passado de jovem ingénuo a amoral, a sua vontade subitamente mudou.

quis recuperar a sua obra, expô-la, expôr-se a si próprio e ao seu amigo que entretanto tinha-se tornado tudo excepto o seu amigo.

mas embora não o soubesse, era já demasiado tarde para tudo.

IV

o teu nome é elefante violeta. ou outra coisa qualquer daquelas que estes anos me tenham ensinado a chamar-te. dei o teu nome a algumas palavras que escrevi há dois verões. mas não é como se pretendê-se que elas fossem o teu retrato - nunca o foram. ao lê-las nem sequer me passa pela cabeça que contenham muito de mim, contêm um pouco, isso sim, não to consigo negar de uma forma que seja sincera.

retirei-as daquele bloco da moleskine, de capa preta, versão «pocket». aquele que jamais me passou pela cabeça mostrar-to, e que achava que nunca que me iria passar nem pelo cú a ideia de um dia partilhá-lo num blog.

os tempos talvez não mudem, mas mudam-nos. basil mudou de ideias e eu, bem, eu cá estou.

V ( ou, talvez, ps: )

nunca me vou esquecer da noite em que o bob dylan nos disse para não pensarmos duas vezes. mas esquece o «don't», ele não o disse directamente para nós, concentra-te no «think twice, it's alright». bem devias saber que é o que tenho feito.

ainda não é tarde demais seja para o que for.
daqui a umas horas vai ser manhã, vai estar frio mas o sol vai brilhar como eu já não via há alguns meses.