dou por mim no silêncio, ele impõe-se. há toda uma casa para restaurar. é preciso parar, respirar, olhar, fazer um rascunho, começar por algum lado. a estrutura está em ruínas. desta vez, pintar por cima, tapar os buracos, mudar a decoração, não chega. não. é uma questão de tempo até entrar em colapso, até tudo cair por terra.
dou por mim a achar que talvez esteja tudo perdido. mas não é aceitável. preciso de me concentrar, este rascunho é tudo o que importa neste momento. pego numa folha em branco e o lápis impele-me a desenhar os mesmos traços, a traçar o mesmo desenho. esbofeteio esta ideia para fora da minha cabeça. mas só para chegar à conclusão que não é algo que possa resolver à chapada. é preciso recomeçar por outro lado.
dou por mim no banco traseiro de um carro, já sem noção da medida da branca que me molda os pensamentos. do verde que me aquece os pulmões, da transparência que me dilui o sangue. da estrada nocturna fica apenas na memória a intensidade das luzes que ultrapassamos. nesse momento, o pensamento é um discurso. a mente é nada. nem sequer uma folha em branco, pois não há escrita, nada se apreende. as palavras, as frases, as imagens, as ideias, limitam-se a soltar-se. de dentro para lado nenhum. um genérico à star wars do qual serei para sempre o único espectador.
dou por mim estendido numa cama, com um teclado no colo, a digitar tecla ante tecla para um blogue. a pensar no rascunho que se recusa a começar. a tentar observar todos os pormenores do quarto, desde as calças em cima do aquecedor que já devem ter secado há dias, à pilha de álbuns em cima da secretária que apesar de não conseguir ler os nomes a esta distância seria bem capaz de enumerá-los um a um, aos livros cuja tarefa de ordená-los está suspensa em fase de ponderação há mais de um ano. tento observar tudo excepto esta imagem do passado que nem às cabeçadas na parede se afasta um milímetro da frente dos meus olhos, obstruindo o presente.
dou por mim perdido num labirinto de escolhas que não quero tomar. perdido no meio de todas essas conas que não quero foder, de todas as viagens que já não quero fazer, do curso que não quero acabar, dos planos que demoraram vinte e três anos a traçar e cerca de cinco dias a perder todo o significado.
agora que dou assim por mim, percebo. foi tudo uma ilusão - usando um eufemismo. sim, estou deitado, no silêncio, perdido em linhas de raciocínio completamente circulares, em vez de tomar o caminho mais curto entre as premissas e a conclusão à qual já teria chegado há muito no meu estado normal. e é assim que, de repente, percebo, tenho catorze anos outra vez. já não sei nada sobre nada. e fico feliz por sentir que faço parte desta miséria, por me sentir um miserável, por sentir. por não ter absolutamente nada. nem uma ideia, nem uma única pista, um único rascunho. nada.
nada ou um mundo inteiro para voltar a percorrer, uma casa nova para construir, e mais uns nove anos pela frente até retornar à casa de partida. e paro satisfeito, respiro de alívio, olho com orgulho, e dou por mim, finalmente, a começar a merda do rascunho sem fazer ideia de como o vou acabar desta vez.
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1 comentário:
só tenho duas palavras: BRU TAL
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