23 de maio de 2009

miopia = misantropia.

com o olhar no limite. há uma dor que não desaparece da cabeça, não se atenua, não permanece na sombra. o tempo, às vezes, congela. olhos inchados, fixos em aneis de fumo, fixos numa luz que realça no meio do que se vê, fixos numa palavra que deixa de fazer sentido a partir do momento em que se desvia o olhar dela, tal como o demais.

e o olhar desvia-se em todas as direcções. a procura incessante de um paradigma, de uma mão, de qualquer coisa. e vê a joana, novamente, como se tivesse acabado de sair do quarto, com doze anos, a dizer ao pai que só tinha ido dar uma volta com uns amigos, que estava bem, para, de seguida, desaparecer para sempre. e depois, como se houvesse alguma ligação entre acontecimentos sem ligação alguma, o olhar vê-se si próprio, com cinco anos, a fugir do jardim de infância, a esconder-se da mãe, sem compreender porque ela não foi trabalhar naquele dia só para procurar, entre lágrimas, o puto cuja única coisa que sabia sobre a vida era que não queria aturar os outros putos, ao menos, por um dia. e aparece o flávio, com quatorze anos, fechado num quarto, a ouvir a mayonaise, a ouvir tudo o que os meus ouvidos ouviam também, âmbos perplexos por estarmos sozinhos numa idade já tão avançada.

de repente, os olhos abrem-se do nada, estão em mil novecentos e oitenta e sete, e têm dois anos de idade. vêem novamente a mãe, desta vez, a segurar o carrinho-de-mão, a caminho da ama, à chuva, numa rua que ainda reconheceriam vinte e um anos depois, em leça da palmeira, se lá voltassem. não há uma única preocupação, o passeio é sereno, ela está lá, é permitido voltar a fechá-los, voltar a adormecer até acordar num qualquer outro lado.

vinte e um anos depois, o andré enfrasca-se de whiskey sozinho em casa semi-consciente do embaraço que sentiria se os olhos da mãe dele trespassassem a porta para olhar os dele. a alexandra desapareceu, dizem que arranjou um gajo e que decidiu ficar assim, longe de confusões. o pedro acabou o curso de enfermagem e percebeu, passados cinco anos em silêncio, que o silêncio não causa amnésia no que diz respeito a amizade. e o j.d. continua, noite após noite, fechado no escritório, convencido que, se os miudos lhe continuarem a alimentar o negócio por mais uns tempos, um dia, poderá mesmo vir a aspirar a dedicar-se de vez ao cinema, como sonhou bem antes de algum dia ter vendido o primeiro saco, ou, sequer, fumado o primeiro paiva.

e as imagens desenrolam-se assim, desprovidas de propósito, de côr, fio-condutor. através da janela o sol anuncia um novo dia, mas acrescenta que ainda não é tarde para adormecer. quem sabe em que ponto o movimento de translação vai deixar o mundo quando se voltar a acordar. se bem que movimentos uniformes nunca levem a nenhum lado minimamente original. só não é um desperdício total de tempo porque, entretanto, numa noite boa, os olhos fechados vêem mais uma vez a diana, a ser fotografada, com vinte e um anos, a sorrir depois da primeira tentativa de preparar uma refeição a dois, sobre a qual elogiou-se a decisão de despejar a lata inteira de cogumelos e lamentou-se a dose mal calculada de sal. numa má, procuram a maria, percorrem a cidade, nunca a chegam a encontrar.

e logo os olhos despertam apenas para voltarem a ser induzidos à cegueira, a humidades que os protejem de percepções mais nítidas do que realmente se passa fora deles. até ao momento em que um minuto volta a demorar, realmente, sessenta segundos a passar. em que o fumo se ergue do cigarro para se suspender no ar, em espirais brancas nas quais fixamos o olhar, até o segurarmos com as mãos, maravilhados por não nos limitarmos a sustê-lo nos pulmões. até que as mãos se abrem, o fumo de novo liberto liberta a atenção do olhar para outras recordações e outros fascínios da vida em câmara-lenta, demasiado lenta para que mais alguém os consiga acompanhar.