23 de abril de 2009

"Borboletas Na Piça" - Studio Report

Em português, "reportagem de estúdio". Diz que é para divagar sobre alguns aspectos do processo de gravação e assim. Bem, foi muito difícil. Custou-me mesmo muito. Uísque e charros. Incomensuravelmente. Horas e horas, eu contra o metrónomo, aberto, à espera de deixar a música violar-me, de instrumento na mão, quando podia muito bem estar a escrever abautemis relativamente maravilhosos no meu espaço pessoal, ou até mesmo a responder aos comentários das meninas. Noites e noites, desesperado por vê-la materializar-se, obstinado em assistir ao seu sagrado nascimento rarefeito; vidrado na busca do lugar perfeito para um bombo, para uma tarola, para um choque, para um raide; enfeitiçado pelas cordas que me sorriem um si de sétima, um mi bemol, as cordas que me choram um ré menor; imóvel ante o contraste preto e branco dum piano bêbedo, ora tecla branca, ora tecla preta, através da dicotomia anciã dos seus meios tons sem idade, em vez de sair de casa e ir ouvir dijeis de eléctro e snifar coca, como fazem os jovens que realmente são felizes.

Sim, tens razão, não devia estar a escrever poesia menor em jeito de crónica socio-pretensiosa, mas sim uma reportagem de estúdio. Muito bem: o processo de gravação ainda está a avançar no processo de gravação que no fundo é a maneira como se processou o desenrolar dos acontecimentos de capturar os sons que aparecem na gravação durante a audição do álbum que é também um processo mas que no fundo é só e ainda uma gravação, enquanto o outro processo está, como é óbvio, intimamente relacionado com o processo de criação, já mais daquele domínio do pseudo-artisto-conceptual aprazível a intelectuais de esquerda, mas é também um aspecto que ainda está a avançar no processo de criação no sentido em que ainda me falta muito fazer uma música. Percebeste? Lá está. Mas é sempre assim tudo muito desorganizado, tudo muito disperso, como não podia deixar de ser numa banda que consiste num só elemento, ainda que assaz bonito. É que fazer tudo sozinho dá um trabalho do caralho, só para que conste e rime.

Há desde músicas já completamente prontas até músicas completamente por fazer. São vinte e sete. A única certeza que têm é que vão estar todas no álbum. Chama-se "Borboletas Na Piça" e vai ter muitos convidados. Digo quem são? Digo. Tem que ser. Não são bem convidados. São amigos que, duma maneira ou de outra, também fazem, por assim dizer, parte deste intrépido projecto. São eles que ouvem as músicas quando ainda me parecem ridículas e que me ajudam a melhorá-las, de uma maneira ou de outra, até elas atingirem a sua forma final, que é quando já não me parecem tão ridículas assim. Obrigado a eles por respirarem. Note-se ainda que estas pessoas não são necessariamente músicos, mesmo que também os haja. Bom, sem mais demoras, consagrar-lhes-ei agora um parágrafo.

São eles - por exemplo e entre os mais-que-confirmados - a Patrícia Matos (www.plastessina.com), a designer que afirma ser a melhor pessoa do mundo embora eu ache que é apenas a melhor pessoa do Alto da Maia, e que faz a arte plástica desta cena toda; o André Cardoso (Death Will Come, Genoflie, As Far As Possible; www.myspace.com/andregenoflie ou www.suorsocial.blogspot.com), que para além de ser o produtor do álbum, é também pequenino, fofo e vai participar com um tema que escreveu integralmente e em regime de exclusividade; a Custódia de Barros, que é considerada por muitos a melhor autora de todos os tempos (sendo a sua última obra de uma magnitude e monumentalidade incomparáveis, como que atingindo a perfeição e chegando mesmo a superá-la, até ao mais-que-perfeito), e que é também, na minha opinião, a minha mãe, e participa activa e vivamente no álbum, com as suas palavras de sapiência advertindo-me para as mais subtis arestas a limar (apesar da sua disponibilidade ser reduzida devido ao facto de passar demasiado tempo a ouvir os Leandro e Leonardo); o Guilherme Lapa (Well Made Mistake, Oblique Rain, My Eyes Inside; www.myspace.com/dramaonbass), que vai compor meia dúzia de três linhas de baixo, dizer-me que sou uma merda e que tenho que melhorar muito se quero mesmo que ele participe nesta bosta de projecto, e ainda co-escrever a música que me falta para acabar o esqueleto daquilo que será o alinhamento do álbum; o Ismael Silva (www.myspace.com/bloopreinsz), que apesar de gostar dos the Smiths, de ser um gajo ligado ao teatro e de aceitar a música electrónica como uma expressão legítima de arte, é, não obstante, bom mocinho e interpretará um número indetermindado de canções no álbum; o Hugo Gil (Quetzal's Feather, Metáfora; www.myspace.com/hugogil), que é o guitarrista mais sentimental de sempre de acordo com os cânones culturais do mundo ocidental, imprimirá o seu romantismo indelével em pelo menos um dos vinte e sete temas do álbum; o André Tavares (Solid, Death Will Come, Genoflie, Preguiçoso; www.myspace.com/andregen ou www.myspace.com/preguicoso) que nasceu no berço de ouro da música, e apesar de ter fugido cedo dessa sua herança musical para abraçar a carreira da comida, retornou ainda a tempo àquilo que lhe corre no sangue, e é a única pessoa que eu conheço capaz de cantar a música que vai cantar da maneira que eu quero que a cantem; o Telmo Ferreira (traumacultural.blogspot.com), escritor, no sentido em que escreve cenas, e ilustre estudante do relativamente prestigiosíssimo curso de Filosofia da Faculdade de Letras do Porto, vai contribuir nesta pura manifestação de arte popular ao dar métrica a algumas das suas palavras para que sejam letras de uma ou outra cançoneta; a Joana Rodrigues (the Sticks & Stones & the Broken Bones; www.myspace.com/perfectcycle), professora de música, exímia realizadora de massa à bolonhesa e vocalista de serviço, vai também interpretar uns temas; e o etc.

Isto, atenção, leitorzinho(a), é só uma coisa que eu escrevi por estar com algum tempo livre - não faças disto a tua bíblia. Aguarda que hei-de escrever uma coisa moderadamente séria e rigorosa sobre o álbum. Aguarda. Mas também não penses que a minha vida é isto. Eu tenho mais que fazer, pá. Estudo e tudo. E não te esqueças que estou inclusivamente a gravar esta merda. Mas também, foda-se, demoro menos tempo a redigir uma cagada destas do que tu a lê-la. Ahah. Estou a brincar contigo, leitorzinho(a). Quem faz isso é o Marcelo Rebelo de Sousa. E o Bruno Aleixo. Eu não. E isto não são cagadas. São cagadas muito bem escritas, num português irrepreensível. Ah pois é. Não, agora a sério, vou dormir, meu. Para me despedir, felicito-te, leitor(a) anónimo(a), por teres lido esta fiel redacção. Tens a minha garantia de seis meses de que, agora que leste tudo isto, estás sem dúvida mais culto e inteligente. E digo-te mais ainda: se voltares a ler tudo de novo, vais ficar mais bonito(a). A sério. Ò lê lá... Estás a ver? Pois, pá. Eu disse-te. Agora não te admires se ficares sexualmente mais atraente quando comprares o álbum...são coisas da vida, pronto.

15 de abril de 2009

um texto de co - autoria (incompleto) "O velho que vivia os sonhos dos outros"

Era coronel, daqueles mesmo rijos, só comia sopa - comida da tropa - argumentava ele; e vivia cada dia como se fosse não o primeiro mas muito perto desse, é que, dizia o coronel, muitos seios havia já visto e muita obscenidade havia ouvido para que pudesse viver cada dia como uma catarse completa, um começar de novo limpo. Não obstante esta rectidão um tanto ou quanto obtusa, podia, e fazia-o muitas vezes, transportar-se através dos olhos daqueles que ainda têm a sorte de ver a bola como apenas uma bola e nada mais. Como ele gostava de viajar esse coronel, privava-se de sonhar durante a noite para que pudesse guardar espaço e energia para os sonhos que vivia através dos outros. A sua pusilanimidade impedia-o de viver esses sonhos um pouco mais de perto, de partilhar as histórias emprestadas com aqueles que o queriam ouvir. É que o velho apesar de rijo não deixava de ter cara de vôvô pateta, com o seu bigode farfalhudo e olhar enorme. O velho J., chamemos-lhe assim, vivia desta forma desde que a sua querida M. abraçou um outro mundo que não o dele, no dela não lhe permitiam ruborescer, respirar sequer, era um atentado. Era chuva, tirando o seu velho chapéu, tudo vinha à romaria pérfida com o melhor fato, pingados pela chuva - e ele a agradecia, chorar não cabia na sua dimensão, precisava daquelas frias lágrimas - as personagens deslizavam pela tabuleiro verde contornando os blocos cinzas, ensopados falavam quase num suplício para o Coronel:
- "Foi Deus que quis", "Foi para um sítio melhor" , "Era boa pessoa"
Velho J. não respondia, apenas fitava a sua, a sua mais que sua, enquanto se distraía com os risos perdidos dos pequenos, caçando e apanhando poças vivendo a inocência que é obrigatória ter, notória quando no lar da Morte o seu tapete é um escorrega.
Velho J o rude, havia quem dizia, sempre foi saudoso, e no presente o mais íntimo gesto o levava para bem longe do presente. A solidão, essa amiga inimiga potenciava todo as suas memórias, lembrou-se mais uma vez porque estava só, a data em que ficou só, ele queria ir chapinhar, queria rebolar no chão verde e saltar os tais blocos cinzentos.... Travou-se!
"M. perdoa-me senti felicidade na memória da tua despedida".

sanja.

I

ele morreu. e foi assim que fomos apresentados. « este é o meu amigo que morreu ontem num acidente de viação ». sobre isso, é tudo quanto sei, tudo quanto quis ou me atrevi a querer saber.
dizem que o silêncio antecede a tempestade e assim foi, tal e qual se diz. três dias de sossego em conjunto. três dias de cigarros sem palavras, olhares inexpressivos, rotinas subitamente sem significado aparente. até que, passadas essas setenta e duas horas, «o funeral é amanhã, ao meio-dia, vou partir daqui a três horas no primeiro autocarro, rumo ao primeiro comboio, com destino à última despedida». e deu três passos, até parar ao som de uma única palavra « espera ».
e esperou. ao fim de trinta minutos de espera eramos três, cada um com a sua mochila, a entrar num carro. ela semi-a-dormir, semi-desmaiada, estendida, no banco de trás. a outra a ligar o motor. eu a ligar o rádio, a escolher o primeiro dos seis álbuns que ouvimos nas sete horas que se seguiram. « ao fim de três dias sem comer e sem dormir, adormeceu », « está nas nossas mãos agora. enrola um e toma sentido às placas, que eu tendo a virar em tudo que é curva e é suposto seguirmos, nas próximas horas, sempre a direito ». sete horas volvidas, havíamos passado cinco fronteiras. quatro por necessidade, uma por distracção.

II

passaram quatro horas desde as sete que haviam passado anteriormente. trinta minutos nos quais nos sentamos à volta de uma mesa, com uma caixa de chocolates e uma garrafa-de-água, onde enrolamos os dois últimos da madrugada e trocamos algumas palavras já mal articuladas que terminaram em « podes então mostrar-me agora onde vamos dormir? » e, trinta segundos depois, « ok, boa noite, isto é, até já ».
três horas nas quais acordei de vinte-em-vinte minutos, o que resultou em nove sonhos distintos dos quais não sou capaz de recordar um único pormenor que seja.
os últimos trinta minutos dividiram-se em
vestir,
conhecer a outra habitante da casa que, entretanto, aparecera enquanto dormíamos,
tomar o pequeno-almoço em conjunto,
fumar quatro cigarros,
rodar um, o primeiro do novo dia, entre três dos quatro,
café,
fumar quatro cigarros,
ir, sair e esperar que os demais também fossem e saíssem do quarto-de-banho,
sair de casa.

III

foi então que nos vimos reduzidos a dois, novamente, eu e ela, como na noite anterior, no meu quarto, quando me disse « ligaram-me agora, o funeral é amanhã » e virou costas e caminhou até ouvir « espera ».
primeiro, fomos visitá-lo a casa. batemos à porta, a companheira de quarto abriu-a por ele. entramos e, logo, separamo-nos. elas entraram num quarto, abraçaram-se e choraram numa linguagem da qual dispensei qualquer tipo de conhecimento para as compreender. eu fiquei na entrada, a observá-lo através das portas abertas, disperso na espessura do ar, na arrumação desarrumada dos objectos, em frases escritas pelos papeis, pelos quadros, pelas fotografias, pelas paredes, escritas por todo o lado. sem necessidade de trocar palavras, estavamos juntos pela primeira vez, ao fim de três dias.
sobre ele, podia atrever-me a dizer, com certeza, o mesmo que qualquer um poderia dizer sobre um qualquer desconhecido: absolutamente nada. no entanto, não se tratava mais de um desconhecido. antes, alguém, agora, de alguma forma, inexistente, cuja existência passada passava a envolver-me. um envolvimento leve. de mim era apenas requerido estar presente, assistir, caminhar lado a lado, ser suporte, existir. estar presente, nada mais.
antes de irmos embora, ela fez questão de ir ao jardim do prédio. disse « ajuda-me a encontrar as pedras ».
o chão era, todo ele, composto por pedras. pensei em perguntar algo do género « quais pedras? » no entanto, limitei-me a caminhar em circulos, olhos no chão, à procura de qualquer coisa que fizesse sentido. no entanto, qualquer coisa apenas fez sentido quando ela as encontrou. duas pedras, que anteriormente havíam sido só uma que, entretanto, se partira, com algo escrito nelas, talvez desenhado, não cheguei a ver de perto, mais uma vez, foi tudo quanto me permiti saber, sem nada mais a perguntar. guardou-as na mala, limpou as lágrimas do rosto, e disse « ok, estou pronta, vamos ».

IV

o funeral. viajamos até uma aldeia nas redondezas durante cerca de quarenta minutos. a capela estava situada no cimo de um monte, no qual seguimos o trajecto da calçada, parando a meio para respirar, olhar à volta, fumar um último cigarro, trocar os últimos olhares, enfim, para respirar. na cerimónia encontravam-se cerca de cem pessoas, divididas em grupos que pareciam reconhecer–se mas cujos membros que não falavam entre si. ela quis ir para o fundo. ressalvar a dor de outros olhares que não os nossos, talvez. havia um monitor que mostrava, retrato atrás de retrato, um álbum fotográfico que tinha como função resumir a vida dele e que a fez sorrir e chorar num intervalo temporal tão curto que me pergunto, desde então, se o fez por esta ordem cronológica ou em simultâneo.
caminhamos em conjunto no momento da despedida. lado a lado, mão na mão. cada um com o seu ramo que, à semelhança de todos os outros, pousamos no caixão, já a dois metros do chão. ela murmurou qualquer coisa, para mim, para ele, talvez para ela própria, não sei, e cedemos a vez. voltamos à calçada, onde paramos a meio para respirar, para fumar mais um cigarro, esperar pelos outros e voltar para a cidade.

V

sentamo-nos na primeira mesa, da explanada, do primeiro café. vodka e café curto para recomeçar o dia. entretanto, a outra chegou para nos levar. de garrafa de vodka numa mão, garrafa de sumo de maçã na outra, « bem, eu vou conduzir, não posso beber, mas trouxe isto para vocês que devem estar a precisar ». algo assim do género.
fomos mandados parar pela polícia na primeira fronteira. passados dez minutos estavamos os três nos bancos da frente, eu e ela a partilhar o mesmo cinto de segurança, garrafa de vodka vazia no chão, cinquenta gramas de ilegalidade na mala, com uma paragem a meio da auto-estrada para tentar perceber se podíamos levar a cabine telefónica do s.o.s. para casa, a ouvir a rádio « magic brno – only hit songs », e a sorrir.
chegamos, levamo-la ao colo para o quarto, segurei-lhe nos cabelos enquanto oferecia a vodka e o sumo de maçã a uma retrete e, por fim, fumamos um de boa noite, sentados no chão do corredor, com as luzes apagadas, excepto as que nos chegavam da rua pela janela, felizes por a ver feliz, sabendo que não ia durar, que no dia seguinte iria acordar, sem nós, sem vodka, sem sumo de maçã, sem qualquer coisa para fumar, sem vontade de fazer qualquer uma dessas coisas, sem absolutamente nada excepto a certeza que não há mais como voltar atrás, que acabara de acordar para o pior dia da sua vida.

2 de abril de 2009

O fim ( 2)

 

 

Estou perdido. Já não consigo sequer imaginar o amanhã. O futuro é completamente imprevisível, é como se eu estivesse a caminhar pelo meio de um nevoeiro tão espesso, que se me aparecer uma parede pela frente, eu não vou ter tempo de me aperceber e parar. Caminho mas ainda, muito cuidadoso porque eu sinto o monstro. Como é possível? Nós abandonamos o monstro, caímos na tentação de o alimentar, mas nunca o fizemos. Como é que ainda o sinto por perto? Estou a caminhar sem saber o que fazer, sem saber para onde e sem saber a razão que me move. Atingi o estado de completa ignorância em relação ao próximo minuto. Isto é grave. Está  a tornar-se ridiculo. Eu não consigo planear nada, porque nada tem tempo de ser planeado. O monstro....ele anda por perto, eu sinto-o. Um animal sem sentimentos, com uma atitude completamente maquiavélica, sem olhar a qualquer meio para atingir os seus fins. Fins dignos, mas que para serem atingidos tem de ser filtrados por oceanos de corrupção. Estou a perder a esperança e o mais triste é que o mundo e o tempo estão a mostrar-me que tudo se repete e que eu não me consigo libertar do monstro.

É por estas, e por muitas mais razões, que prefiro guardar para mim próprio, que me pergunto se o Monstro, não será apenas a minha própria sombra.