23 de maio de 2009

miopia = misantropia.

com o olhar no limite. há uma dor que não desaparece da cabeça, não se atenua, não permanece na sombra. o tempo, às vezes, congela. olhos inchados, fixos em aneis de fumo, fixos numa luz que realça no meio do que se vê, fixos numa palavra que deixa de fazer sentido a partir do momento em que se desvia o olhar dela, tal como o demais.

e o olhar desvia-se em todas as direcções. a procura incessante de um paradigma, de uma mão, de qualquer coisa. e vê a joana, novamente, como se tivesse acabado de sair do quarto, com doze anos, a dizer ao pai que só tinha ido dar uma volta com uns amigos, que estava bem, para, de seguida, desaparecer para sempre. e depois, como se houvesse alguma ligação entre acontecimentos sem ligação alguma, o olhar vê-se si próprio, com cinco anos, a fugir do jardim de infância, a esconder-se da mãe, sem compreender porque ela não foi trabalhar naquele dia só para procurar, entre lágrimas, o puto cuja única coisa que sabia sobre a vida era que não queria aturar os outros putos, ao menos, por um dia. e aparece o flávio, com quatorze anos, fechado num quarto, a ouvir a mayonaise, a ouvir tudo o que os meus ouvidos ouviam também, âmbos perplexos por estarmos sozinhos numa idade já tão avançada.

de repente, os olhos abrem-se do nada, estão em mil novecentos e oitenta e sete, e têm dois anos de idade. vêem novamente a mãe, desta vez, a segurar o carrinho-de-mão, a caminho da ama, à chuva, numa rua que ainda reconheceriam vinte e um anos depois, em leça da palmeira, se lá voltassem. não há uma única preocupação, o passeio é sereno, ela está lá, é permitido voltar a fechá-los, voltar a adormecer até acordar num qualquer outro lado.

vinte e um anos depois, o andré enfrasca-se de whiskey sozinho em casa semi-consciente do embaraço que sentiria se os olhos da mãe dele trespassassem a porta para olhar os dele. a alexandra desapareceu, dizem que arranjou um gajo e que decidiu ficar assim, longe de confusões. o pedro acabou o curso de enfermagem e percebeu, passados cinco anos em silêncio, que o silêncio não causa amnésia no que diz respeito a amizade. e o j.d. continua, noite após noite, fechado no escritório, convencido que, se os miudos lhe continuarem a alimentar o negócio por mais uns tempos, um dia, poderá mesmo vir a aspirar a dedicar-se de vez ao cinema, como sonhou bem antes de algum dia ter vendido o primeiro saco, ou, sequer, fumado o primeiro paiva.

e as imagens desenrolam-se assim, desprovidas de propósito, de côr, fio-condutor. através da janela o sol anuncia um novo dia, mas acrescenta que ainda não é tarde para adormecer. quem sabe em que ponto o movimento de translação vai deixar o mundo quando se voltar a acordar. se bem que movimentos uniformes nunca levem a nenhum lado minimamente original. só não é um desperdício total de tempo porque, entretanto, numa noite boa, os olhos fechados vêem mais uma vez a diana, a ser fotografada, com vinte e um anos, a sorrir depois da primeira tentativa de preparar uma refeição a dois, sobre a qual elogiou-se a decisão de despejar a lata inteira de cogumelos e lamentou-se a dose mal calculada de sal. numa má, procuram a maria, percorrem a cidade, nunca a chegam a encontrar.

e logo os olhos despertam apenas para voltarem a ser induzidos à cegueira, a humidades que os protejem de percepções mais nítidas do que realmente se passa fora deles. até ao momento em que um minuto volta a demorar, realmente, sessenta segundos a passar. em que o fumo se ergue do cigarro para se suspender no ar, em espirais brancas nas quais fixamos o olhar, até o segurarmos com as mãos, maravilhados por não nos limitarmos a sustê-lo nos pulmões. até que as mãos se abrem, o fumo de novo liberto liberta a atenção do olhar para outras recordações e outros fascínios da vida em câmara-lenta, demasiado lenta para que mais alguém os consiga acompanhar. 

23 de abril de 2009

"Borboletas Na Piça" - Studio Report

Em português, "reportagem de estúdio". Diz que é para divagar sobre alguns aspectos do processo de gravação e assim. Bem, foi muito difícil. Custou-me mesmo muito. Uísque e charros. Incomensuravelmente. Horas e horas, eu contra o metrónomo, aberto, à espera de deixar a música violar-me, de instrumento na mão, quando podia muito bem estar a escrever abautemis relativamente maravilhosos no meu espaço pessoal, ou até mesmo a responder aos comentários das meninas. Noites e noites, desesperado por vê-la materializar-se, obstinado em assistir ao seu sagrado nascimento rarefeito; vidrado na busca do lugar perfeito para um bombo, para uma tarola, para um choque, para um raide; enfeitiçado pelas cordas que me sorriem um si de sétima, um mi bemol, as cordas que me choram um ré menor; imóvel ante o contraste preto e branco dum piano bêbedo, ora tecla branca, ora tecla preta, através da dicotomia anciã dos seus meios tons sem idade, em vez de sair de casa e ir ouvir dijeis de eléctro e snifar coca, como fazem os jovens que realmente são felizes.

Sim, tens razão, não devia estar a escrever poesia menor em jeito de crónica socio-pretensiosa, mas sim uma reportagem de estúdio. Muito bem: o processo de gravação ainda está a avançar no processo de gravação que no fundo é a maneira como se processou o desenrolar dos acontecimentos de capturar os sons que aparecem na gravação durante a audição do álbum que é também um processo mas que no fundo é só e ainda uma gravação, enquanto o outro processo está, como é óbvio, intimamente relacionado com o processo de criação, já mais daquele domínio do pseudo-artisto-conceptual aprazível a intelectuais de esquerda, mas é também um aspecto que ainda está a avançar no processo de criação no sentido em que ainda me falta muito fazer uma música. Percebeste? Lá está. Mas é sempre assim tudo muito desorganizado, tudo muito disperso, como não podia deixar de ser numa banda que consiste num só elemento, ainda que assaz bonito. É que fazer tudo sozinho dá um trabalho do caralho, só para que conste e rime.

Há desde músicas já completamente prontas até músicas completamente por fazer. São vinte e sete. A única certeza que têm é que vão estar todas no álbum. Chama-se "Borboletas Na Piça" e vai ter muitos convidados. Digo quem são? Digo. Tem que ser. Não são bem convidados. São amigos que, duma maneira ou de outra, também fazem, por assim dizer, parte deste intrépido projecto. São eles que ouvem as músicas quando ainda me parecem ridículas e que me ajudam a melhorá-las, de uma maneira ou de outra, até elas atingirem a sua forma final, que é quando já não me parecem tão ridículas assim. Obrigado a eles por respirarem. Note-se ainda que estas pessoas não são necessariamente músicos, mesmo que também os haja. Bom, sem mais demoras, consagrar-lhes-ei agora um parágrafo.

São eles - por exemplo e entre os mais-que-confirmados - a Patrícia Matos (www.plastessina.com), a designer que afirma ser a melhor pessoa do mundo embora eu ache que é apenas a melhor pessoa do Alto da Maia, e que faz a arte plástica desta cena toda; o André Cardoso (Death Will Come, Genoflie, As Far As Possible; www.myspace.com/andregenoflie ou www.suorsocial.blogspot.com), que para além de ser o produtor do álbum, é também pequenino, fofo e vai participar com um tema que escreveu integralmente e em regime de exclusividade; a Custódia de Barros, que é considerada por muitos a melhor autora de todos os tempos (sendo a sua última obra de uma magnitude e monumentalidade incomparáveis, como que atingindo a perfeição e chegando mesmo a superá-la, até ao mais-que-perfeito), e que é também, na minha opinião, a minha mãe, e participa activa e vivamente no álbum, com as suas palavras de sapiência advertindo-me para as mais subtis arestas a limar (apesar da sua disponibilidade ser reduzida devido ao facto de passar demasiado tempo a ouvir os Leandro e Leonardo); o Guilherme Lapa (Well Made Mistake, Oblique Rain, My Eyes Inside; www.myspace.com/dramaonbass), que vai compor meia dúzia de três linhas de baixo, dizer-me que sou uma merda e que tenho que melhorar muito se quero mesmo que ele participe nesta bosta de projecto, e ainda co-escrever a música que me falta para acabar o esqueleto daquilo que será o alinhamento do álbum; o Ismael Silva (www.myspace.com/bloopreinsz), que apesar de gostar dos the Smiths, de ser um gajo ligado ao teatro e de aceitar a música electrónica como uma expressão legítima de arte, é, não obstante, bom mocinho e interpretará um número indetermindado de canções no álbum; o Hugo Gil (Quetzal's Feather, Metáfora; www.myspace.com/hugogil), que é o guitarrista mais sentimental de sempre de acordo com os cânones culturais do mundo ocidental, imprimirá o seu romantismo indelével em pelo menos um dos vinte e sete temas do álbum; o André Tavares (Solid, Death Will Come, Genoflie, Preguiçoso; www.myspace.com/andregen ou www.myspace.com/preguicoso) que nasceu no berço de ouro da música, e apesar de ter fugido cedo dessa sua herança musical para abraçar a carreira da comida, retornou ainda a tempo àquilo que lhe corre no sangue, e é a única pessoa que eu conheço capaz de cantar a música que vai cantar da maneira que eu quero que a cantem; o Telmo Ferreira (traumacultural.blogspot.com), escritor, no sentido em que escreve cenas, e ilustre estudante do relativamente prestigiosíssimo curso de Filosofia da Faculdade de Letras do Porto, vai contribuir nesta pura manifestação de arte popular ao dar métrica a algumas das suas palavras para que sejam letras de uma ou outra cançoneta; a Joana Rodrigues (the Sticks & Stones & the Broken Bones; www.myspace.com/perfectcycle), professora de música, exímia realizadora de massa à bolonhesa e vocalista de serviço, vai também interpretar uns temas; e o etc.

Isto, atenção, leitorzinho(a), é só uma coisa que eu escrevi por estar com algum tempo livre - não faças disto a tua bíblia. Aguarda que hei-de escrever uma coisa moderadamente séria e rigorosa sobre o álbum. Aguarda. Mas também não penses que a minha vida é isto. Eu tenho mais que fazer, pá. Estudo e tudo. E não te esqueças que estou inclusivamente a gravar esta merda. Mas também, foda-se, demoro menos tempo a redigir uma cagada destas do que tu a lê-la. Ahah. Estou a brincar contigo, leitorzinho(a). Quem faz isso é o Marcelo Rebelo de Sousa. E o Bruno Aleixo. Eu não. E isto não são cagadas. São cagadas muito bem escritas, num português irrepreensível. Ah pois é. Não, agora a sério, vou dormir, meu. Para me despedir, felicito-te, leitor(a) anónimo(a), por teres lido esta fiel redacção. Tens a minha garantia de seis meses de que, agora que leste tudo isto, estás sem dúvida mais culto e inteligente. E digo-te mais ainda: se voltares a ler tudo de novo, vais ficar mais bonito(a). A sério. Ò lê lá... Estás a ver? Pois, pá. Eu disse-te. Agora não te admires se ficares sexualmente mais atraente quando comprares o álbum...são coisas da vida, pronto.

15 de abril de 2009

um texto de co - autoria (incompleto) "O velho que vivia os sonhos dos outros"

Era coronel, daqueles mesmo rijos, só comia sopa - comida da tropa - argumentava ele; e vivia cada dia como se fosse não o primeiro mas muito perto desse, é que, dizia o coronel, muitos seios havia já visto e muita obscenidade havia ouvido para que pudesse viver cada dia como uma catarse completa, um começar de novo limpo. Não obstante esta rectidão um tanto ou quanto obtusa, podia, e fazia-o muitas vezes, transportar-se através dos olhos daqueles que ainda têm a sorte de ver a bola como apenas uma bola e nada mais. Como ele gostava de viajar esse coronel, privava-se de sonhar durante a noite para que pudesse guardar espaço e energia para os sonhos que vivia através dos outros. A sua pusilanimidade impedia-o de viver esses sonhos um pouco mais de perto, de partilhar as histórias emprestadas com aqueles que o queriam ouvir. É que o velho apesar de rijo não deixava de ter cara de vôvô pateta, com o seu bigode farfalhudo e olhar enorme. O velho J., chamemos-lhe assim, vivia desta forma desde que a sua querida M. abraçou um outro mundo que não o dele, no dela não lhe permitiam ruborescer, respirar sequer, era um atentado. Era chuva, tirando o seu velho chapéu, tudo vinha à romaria pérfida com o melhor fato, pingados pela chuva - e ele a agradecia, chorar não cabia na sua dimensão, precisava daquelas frias lágrimas - as personagens deslizavam pela tabuleiro verde contornando os blocos cinzas, ensopados falavam quase num suplício para o Coronel:
- "Foi Deus que quis", "Foi para um sítio melhor" , "Era boa pessoa"
Velho J. não respondia, apenas fitava a sua, a sua mais que sua, enquanto se distraía com os risos perdidos dos pequenos, caçando e apanhando poças vivendo a inocência que é obrigatória ter, notória quando no lar da Morte o seu tapete é um escorrega.
Velho J o rude, havia quem dizia, sempre foi saudoso, e no presente o mais íntimo gesto o levava para bem longe do presente. A solidão, essa amiga inimiga potenciava todo as suas memórias, lembrou-se mais uma vez porque estava só, a data em que ficou só, ele queria ir chapinhar, queria rebolar no chão verde e saltar os tais blocos cinzentos.... Travou-se!
"M. perdoa-me senti felicidade na memória da tua despedida".

sanja.

I

ele morreu. e foi assim que fomos apresentados. « este é o meu amigo que morreu ontem num acidente de viação ». sobre isso, é tudo quanto sei, tudo quanto quis ou me atrevi a querer saber.
dizem que o silêncio antecede a tempestade e assim foi, tal e qual se diz. três dias de sossego em conjunto. três dias de cigarros sem palavras, olhares inexpressivos, rotinas subitamente sem significado aparente. até que, passadas essas setenta e duas horas, «o funeral é amanhã, ao meio-dia, vou partir daqui a três horas no primeiro autocarro, rumo ao primeiro comboio, com destino à última despedida». e deu três passos, até parar ao som de uma única palavra « espera ».
e esperou. ao fim de trinta minutos de espera eramos três, cada um com a sua mochila, a entrar num carro. ela semi-a-dormir, semi-desmaiada, estendida, no banco de trás. a outra a ligar o motor. eu a ligar o rádio, a escolher o primeiro dos seis álbuns que ouvimos nas sete horas que se seguiram. « ao fim de três dias sem comer e sem dormir, adormeceu », « está nas nossas mãos agora. enrola um e toma sentido às placas, que eu tendo a virar em tudo que é curva e é suposto seguirmos, nas próximas horas, sempre a direito ». sete horas volvidas, havíamos passado cinco fronteiras. quatro por necessidade, uma por distracção.

II

passaram quatro horas desde as sete que haviam passado anteriormente. trinta minutos nos quais nos sentamos à volta de uma mesa, com uma caixa de chocolates e uma garrafa-de-água, onde enrolamos os dois últimos da madrugada e trocamos algumas palavras já mal articuladas que terminaram em « podes então mostrar-me agora onde vamos dormir? » e, trinta segundos depois, « ok, boa noite, isto é, até já ».
três horas nas quais acordei de vinte-em-vinte minutos, o que resultou em nove sonhos distintos dos quais não sou capaz de recordar um único pormenor que seja.
os últimos trinta minutos dividiram-se em
vestir,
conhecer a outra habitante da casa que, entretanto, aparecera enquanto dormíamos,
tomar o pequeno-almoço em conjunto,
fumar quatro cigarros,
rodar um, o primeiro do novo dia, entre três dos quatro,
café,
fumar quatro cigarros,
ir, sair e esperar que os demais também fossem e saíssem do quarto-de-banho,
sair de casa.

III

foi então que nos vimos reduzidos a dois, novamente, eu e ela, como na noite anterior, no meu quarto, quando me disse « ligaram-me agora, o funeral é amanhã » e virou costas e caminhou até ouvir « espera ».
primeiro, fomos visitá-lo a casa. batemos à porta, a companheira de quarto abriu-a por ele. entramos e, logo, separamo-nos. elas entraram num quarto, abraçaram-se e choraram numa linguagem da qual dispensei qualquer tipo de conhecimento para as compreender. eu fiquei na entrada, a observá-lo através das portas abertas, disperso na espessura do ar, na arrumação desarrumada dos objectos, em frases escritas pelos papeis, pelos quadros, pelas fotografias, pelas paredes, escritas por todo o lado. sem necessidade de trocar palavras, estavamos juntos pela primeira vez, ao fim de três dias.
sobre ele, podia atrever-me a dizer, com certeza, o mesmo que qualquer um poderia dizer sobre um qualquer desconhecido: absolutamente nada. no entanto, não se tratava mais de um desconhecido. antes, alguém, agora, de alguma forma, inexistente, cuja existência passada passava a envolver-me. um envolvimento leve. de mim era apenas requerido estar presente, assistir, caminhar lado a lado, ser suporte, existir. estar presente, nada mais.
antes de irmos embora, ela fez questão de ir ao jardim do prédio. disse « ajuda-me a encontrar as pedras ».
o chão era, todo ele, composto por pedras. pensei em perguntar algo do género « quais pedras? » no entanto, limitei-me a caminhar em circulos, olhos no chão, à procura de qualquer coisa que fizesse sentido. no entanto, qualquer coisa apenas fez sentido quando ela as encontrou. duas pedras, que anteriormente havíam sido só uma que, entretanto, se partira, com algo escrito nelas, talvez desenhado, não cheguei a ver de perto, mais uma vez, foi tudo quanto me permiti saber, sem nada mais a perguntar. guardou-as na mala, limpou as lágrimas do rosto, e disse « ok, estou pronta, vamos ».

IV

o funeral. viajamos até uma aldeia nas redondezas durante cerca de quarenta minutos. a capela estava situada no cimo de um monte, no qual seguimos o trajecto da calçada, parando a meio para respirar, olhar à volta, fumar um último cigarro, trocar os últimos olhares, enfim, para respirar. na cerimónia encontravam-se cerca de cem pessoas, divididas em grupos que pareciam reconhecer–se mas cujos membros que não falavam entre si. ela quis ir para o fundo. ressalvar a dor de outros olhares que não os nossos, talvez. havia um monitor que mostrava, retrato atrás de retrato, um álbum fotográfico que tinha como função resumir a vida dele e que a fez sorrir e chorar num intervalo temporal tão curto que me pergunto, desde então, se o fez por esta ordem cronológica ou em simultâneo.
caminhamos em conjunto no momento da despedida. lado a lado, mão na mão. cada um com o seu ramo que, à semelhança de todos os outros, pousamos no caixão, já a dois metros do chão. ela murmurou qualquer coisa, para mim, para ele, talvez para ela própria, não sei, e cedemos a vez. voltamos à calçada, onde paramos a meio para respirar, para fumar mais um cigarro, esperar pelos outros e voltar para a cidade.

V

sentamo-nos na primeira mesa, da explanada, do primeiro café. vodka e café curto para recomeçar o dia. entretanto, a outra chegou para nos levar. de garrafa de vodka numa mão, garrafa de sumo de maçã na outra, « bem, eu vou conduzir, não posso beber, mas trouxe isto para vocês que devem estar a precisar ». algo assim do género.
fomos mandados parar pela polícia na primeira fronteira. passados dez minutos estavamos os três nos bancos da frente, eu e ela a partilhar o mesmo cinto de segurança, garrafa de vodka vazia no chão, cinquenta gramas de ilegalidade na mala, com uma paragem a meio da auto-estrada para tentar perceber se podíamos levar a cabine telefónica do s.o.s. para casa, a ouvir a rádio « magic brno – only hit songs », e a sorrir.
chegamos, levamo-la ao colo para o quarto, segurei-lhe nos cabelos enquanto oferecia a vodka e o sumo de maçã a uma retrete e, por fim, fumamos um de boa noite, sentados no chão do corredor, com as luzes apagadas, excepto as que nos chegavam da rua pela janela, felizes por a ver feliz, sabendo que não ia durar, que no dia seguinte iria acordar, sem nós, sem vodka, sem sumo de maçã, sem qualquer coisa para fumar, sem vontade de fazer qualquer uma dessas coisas, sem absolutamente nada excepto a certeza que não há mais como voltar atrás, que acabara de acordar para o pior dia da sua vida.

2 de abril de 2009

O fim ( 2)

 

 

Estou perdido. Já não consigo sequer imaginar o amanhã. O futuro é completamente imprevisível, é como se eu estivesse a caminhar pelo meio de um nevoeiro tão espesso, que se me aparecer uma parede pela frente, eu não vou ter tempo de me aperceber e parar. Caminho mas ainda, muito cuidadoso porque eu sinto o monstro. Como é possível? Nós abandonamos o monstro, caímos na tentação de o alimentar, mas nunca o fizemos. Como é que ainda o sinto por perto? Estou a caminhar sem saber o que fazer, sem saber para onde e sem saber a razão que me move. Atingi o estado de completa ignorância em relação ao próximo minuto. Isto é grave. Está  a tornar-se ridiculo. Eu não consigo planear nada, porque nada tem tempo de ser planeado. O monstro....ele anda por perto, eu sinto-o. Um animal sem sentimentos, com uma atitude completamente maquiavélica, sem olhar a qualquer meio para atingir os seus fins. Fins dignos, mas que para serem atingidos tem de ser filtrados por oceanos de corrupção. Estou a perder a esperança e o mais triste é que o mundo e o tempo estão a mostrar-me que tudo se repete e que eu não me consigo libertar do monstro.

É por estas, e por muitas mais razões, que prefiro guardar para mim próprio, que me pergunto se o Monstro, não será apenas a minha própria sombra. 

 

30 de março de 2009

Palavras

Não há muito que se possa dizer... Acho que tudo já foi dito entretanto. Enquanto escrevo, quase toda a gente já disse tudo o que interessava, ou quase tudo.
Em parte podem ter calado as suas confissões, eles sabem que alguém as revelou, já, ou as revelará, amanhã.

Não tenho mais a dizer. Mas pergunto: que frases omitiram hoje? O que vão dizer amanhã?

Nunca se arrependeram do uso que deram às palavras?

16 de março de 2009

metafísico sem uma meta é só físico, algo que compreendemos razoavelmente bem sem recurso a bibliografia.

ver a vida por um prisma. ver um raio de luz desdobrar-se nos espectros de côr que o constituem. como tirar um véu, despir alguém, ler um diário. antes de nós todos falharam. falavam da natureza, da humana e da das coisas materiais e espirituais. e nunca mais se calaram. ainda hoje os ouvimos em sucessivas tentativas de substituir os dogmas do passado pelos paradigmas do presente, conscientes das limitações da nossa espécie no que diz respeito a declarações começadas por: a verdade é. como se a verdade nos dissesse respeito. se fosse suposto sabermos alguma coisa sobre coisa alguma não precisaríamos de um prisma, nem de estender a mão para descobrir um qualquer véu. e por aí adiante.

nós dispensamos a responsabilidade de saber, de informar, de guiar.
não há nada de que não tenhamos percepção imediata sobre o que esperemos vir a possuir qualquer nível de sabedoria a posteriori. nascemos com demasiadas debilidades nas nossas estruturas subconscientes, a tal ponto que não encontramos no nosso horizonte de possibilidades uma única que nos permita estabelecer uma ponte de comunicação com alguém e transmitir uma ideia. por mais simples, decomposta, indivisível, banal, que seja. é nossa. e um nosso que seja nosso é possessivo por definição, é indissociável da nossa condição, da estupidez crónica que sustem a nossa inteligência. é, numa palavra: um-não-tens-nada-que-ver-com-isso-e-mesmo-que-tivesses-eu-não-to-conseguiria-explicar-ou-talvez-simplesmente-não-esteja-para-aí-virado. logo, não esperes de nós qualquer palavra, nenhum dos nossos dedos se vai erguer para te apontar o caminho a seguir. simplesmente, não importa. o mapa já foi desenhado, os continentes delimitados, todas as coordenadas estão marcadas. a herança que as gerações nos transmitiram com carinho e com todo o seu suor: um livro demasiado rasurado para que possamos agora acrescentar um rascunho que seja. um mundo no qual terra-prometida não passa de uma expressão linguística e, no qual, niilismo se confunde cada vez mais com qualquer coisa que esteja à frente dos nossos olhos pois, no fundo, essa falha, esse vazio é tudo que nos salta aos olhos no meio da imensidão das coisas que assimilamos ininterruptamente.

9 de março de 2009

E Irás Talvez Ferir-te Nos Meus Destroços

Horas em linha, mas desta vez tudo entorpecidamente equilibrado na justa omoplata de razão e embraseamento oculto na introspecta insurreição da nossa memória metafísica, e também, uma vez mais, no plural, desta feita sem meras perguntas ou ousadas questões químicas sob os gestos férteis como nunca e preponderantes quentes e obtusos como frias feridas cáusticas estendidas ao fogo do nosso ósculo. Bravos gestos incorpóreos, Bravo desinflamar estratégico às horas simétricas do esquecimento, que breve nevralgia de necessitar se encontrasse, agora, para não fazer a desfeita ao passado, nos caminhos e trilhos que seriam, agora, estradas inseguras e exíguas no agitadíssimo balanceamento demente da cogitação coerciva na dispensa abandonada que é cavidade do coração em cinzas nefelibatas.
Ainda assim me questiono se deixarás o silêncio abater-se sobre nós com o seu despótico murmurar gélido, e eu, que escrevo à luz da lua híbridos modernos de música e percepção, cegamente crente permanente e eloquente das quentes palavras soltas do pensamento, palavras soltas do pensamento, palavras soltas do pensamento que regem o amanhecer.
Contudo, portanto, mas não descuidando o enredo, se possível melhor, e ao seu perfume estrangeiro, quão exótica despótica fragrância salteadora dos sentidos olfactivos grevistas, que por vezes se opõem ao inexorável racionalismo, e que quase sempre deixam os melhores por terra ao fervilhar taciturno e medonho, de qual edifício nos encontramos, isto é chão duro e opulento da compaixão inalcançável, de qual casa ou lar no deserto inaudível dos segredos do corpo e das suas fugas na parede às estrelas que se fazem prisioneiras nas suas opiniões de brilho ostensivo efémero como se zombassem da nossa miséria maravilhosa em silêncio, qual estrutura magnífica em declínio de sentir sem o pulsar das premissas essenciais ao futuro, e agora a zombaria é a do ardente sol dourado da gloriosa manhã de soturnidade ofuscante, que pelo menos foram essas as tenras palavras que a percepção nos leu, incisivo ao primeiro cavo levantar de pálpebras, farejando o sangue seco das feridas interiores do tal narrador nefelibata, que se de isolamento e exercício mental de caminhos, opções e experiências celestes do interior flamejante se alimenta vorazmente, ao primeiro separar os lábios e, rapidamente, de repente, somos súbitos olhos a viajar o mundo que os rodeiam, e porque não a nós também, confluindo no silêncio vazio e alvoroço físico desta terra agitada e de joelhos nesta mesma terra e seu alvoroço rotativo de solidão e gente desfeita em sonhos ou nulidade, quase lhe suplicamos para parar de girar no sentido inverso ao dos movimentos incertos enigmáticos dos nossos corações secretos, para deixar o sol arder na nossa confusão de entranhas e sofrer bem, sorrindo, ao último deixar o cárcere, estrutura ou casa de rastejante, e cair na silenciosa percepção que nos trouxe até este insano equador da vida.
Sabendo tudo isto inconscientemente não nos sentimos concretizadamente nas nossas posições concretas de fertilidade, que se é isto que sabemos será esse posicionamento radiante de passos por dar e flores nuas nas suas duras cores sujas, viúvas esquecidas pela chuva, que a água tem os seus afazeres no perfeito ciclo dogmático, estejam as flores porventura erradas, e nasce por todo o lado e nunca morre, isto é, pela mesma natureza perfeita que é quase um feliz suicídio, mas sempre lhes chegou a água, que indolência termos julgado o contrário, que agnóstica heresia ateia, para se reproduzirem depois de se alimentarem e antes de alimentarem o futuro. E se isto não é perfeito, também eu cambalearei eternamente nos balanços duvidosos do tempo, que a percepção não terá todo o significado e talvez a água não me chegue à alma, em que iremos pensar sem a nossa louca sonolência de sentidos apurados, Mas a chuva caíu nas flores, não entremos em devaneios de ingratidão a esta terra, não supliquemos ao tempo com o mesmo coração que nos ajoelhamos ao chão desta mãe frondosa e completíssima, pois não só dele nada se concebe em pesada infelicidade ou glória, que importa, como foi ele próprio um filho ingrato de um filho ingrato, poderoso neto bastardo, intransponível àquela página inesquecível em que registei todos os gestos absurdos de ânsia de continuidade, ou contínua ansiedade, também não seria mentira nenhuma, e todos os movimentos arbitrários, tudo em linha, nas horas simétricas do nosso amor indivisível.
Aos momentos térreos do paraíso, um voo de mãos, no eterno sorrir de éter. Ao teu suspirar de pulsos, uma expressão envernizada e distante, que a face humana também consegue saltar por cima de todas as coisas, obstruiu os passos da nossa dança espiral de hálito, mas nada que o teu respirar quente não adormeça facilmente à pobreza incontornável, graves narizes sentimentais, que simetria de medo e contas incertas de paixão.
Não me perdendo neste soturno desperdício dissertar, faço-me lembrar às posições e vultos do posicionamento, pois será daí que desperdiçaremos dissertaremos mais seguros e confiantes. Mas ainda não está nada decidido, só para que conste no seio profundo do teu insciente responder. Talvez hoje sopre menos vento, brilhe menos o sol ou não venham as nuvens com a sua estranheza de mundo, talvez nem haja céu, na opressão do ameno conforto que te criou frágil e que na incerteza perfeita da natureza o universo metafísico se una todo, mas não, perdi-me outra vez a desperdiçar dissertar sobre o tudo e sobre o nada nulo, mais fundo, solene e versátil, na vaga calma, descoberto de mágoa e prazer, em perfeito exagero de frieza, que hoje, sim, hoje, neste dia, deu-se-nos a alma às antíteses e contradições e perfeições, mas descoberto de dor e de felicidade, muito mais solto, austero e sentido, em mim, em ti, na nossa magnificente auriflama de desconhecimento total à tua eterna disposição, à simetria de tempo que controlamos, Horas, aos gestos inarticulados no querer crer na verdade do destino, fado patriota, porque não, aos movimentos loucos no sulco de lanhos abertos que se te estenderam sinceros, teus, à desinência de laços perpetuamente frágeis através da trágica expressão que foi concertina de palavras feridas sob as absorventes raízes do mundo nulo, tolice seria desgastar com palavras a minha eterna memória da nossa delustre embriaguez, a ti.

6 de março de 2009

Amanhã Os Ecos Moldarão Sozinhos Todos Os Lugares Idos

Horas simétricas, e todos os gestos e movimentos em linha descolonizando, bravos gestos de fertilidade, as profecias esquecidas mesmo nas viagens mais longas, e tecem-se os laços, desinência, pois claro, que mais palavras desgastassem a nossa delustre embriaguez, aqui, no topo do mundo. O meu sulco de feridas perdido à tua mão é o nosso desinflamar estratégico e também o teu fornecimento obtuso de preponderância e desconfiança no estóico bulício corpóreo. Corte na tela infame de descoberta, incisão profunda no exigente olfacto infantil, miserável esculpir teu perfume, Movimentos em linha e duros e assombram-nos os irremediáveis espíritos de um conhecer anterior com o ar forte do paraíso, que não permanecesse magnetismo solene e estúrdia de pensamento, que velhos relógios perdidos no amanhecer guardassem devotamente a infusão perfumada das vossas tímidas complacências, demoradas, mas tudo isto seria nervosismo atípico e imperceptível ao âmago de nós, que me abrigo, não se façam as palavras de água em quedas, mas rapidamente se mostrariam ser as mais revolvidas de alma e olhando bem às intransigências meticulosas das nossas feridas abertas, esse revolver interior e transparecer imperceptível é o nosso estimado eufemismo de calma e prazer.
Mas no implacável avançar no mesmo sítio, não podemos esquecer-nos de que todo o fundamento se levanta do chão ao nosso perpétuo estremecer na distância, que todo o mito de perfeição nos movimentos aleatórios do amor nos caísse ao sentimento de mar aberto, futuro e nostalgia, e ainda aparentemente detínhamos o respirar por melhores horas que sempre viriam, não fossem todas estas palavras sonhos mal esquecidos ou brasas ainda quentes, sobreviventes de um fogo anterior e por isso dou-te um nome de água para que cresças no silêncio.
Asas cor-de-sonho, neste monstruoso perecer de saudade que largos sorrisos fossem as longínquas noções de nós sob o impulso da alteza da nossa inocência perpetuamente segura ao nosso chão. Filtros na saciedade que nos afastasse de nós, de tão leve espasmo de leveza espessa e concórdia, na mais alta das ambições aladas, neste mar de recônditos fundos e corais de línguas e mãos dadas que é o verbo metafísico estendido ao ressoar magnético do teu breve coração em chamas, o teu mais profundo precipício de amar e esquecer, Ah, mas as horas simétricas, as horas simétricas e as envolventes metáforas proxémicas, às quais oferecemos o nosso culto arbítrio de liberdade e políticas sofistas do crepúsculo mais isolado na nossa sensorialidade, se é que a palavra já tenha sido concebida, são alvos ao nosso grave respirar, porquê no plural se deveria perguntar, mas para isso, desinência, mesmo conhecendo as fatalidades herméticas do sinistro caudal de questões e o ar forte do paraíso.
Se o topo do mundo nos permitisse, quereríamos subir mais ainda, mas plácidos de superstição são os planos ingénuos de vida ou de morte, de qual questão nascemos nós. De que gérmen solene, mesmo as nossas orações arcaicas e o nosso bulício sibilante na incerteza ou dúvida que fosse a ponte entre toda a prosa de algum vacilar momentâneo e rosas ao objecto estupendo da nossa poesia.
Vejamos o novo dia nascer a voar nestas palavras, e neste enquistar violento, rapidamente somos fósseis encantados na meada química, que nós os homens lidos pelo tempo reconhecemos através dos desenfreados movimentos pendulares no limbo devasso à eternidade, oculta magreza da acção sobrepremediatada, que sim, nas minhas malas-artes sou um mago do neologismo, não me estranhe o leitor ou o crítico malbarate o fétido cansaço da tinta eterna, pois ela também o aparenta, mas rumando ao nédio futuro de algodão, que ainda na ausência do artifício, não se assuma necrose nos fios hermetica e devotamente tecidos da vida, mas a necessidade nevrálgica da nossa posição ancestral remanescente dos caminhos que tomamos, até mesmo dos trilhos que marcamos na mais pura e profunda intenção de seguir, que nos tornou pomposos nefelibatas do esquecimento outrem, rascunho no taciturno citar ao proscénio, lustrosa embriaguez.

20 de fevereiro de 2009

um dia no campo

No meio do nada, um castelo, em todo o lado um eco que reverbera. Uma figura indistinta aponta, insegura, para algures. A indefinição é tida por certa, chamam-lhe incompletude integrante.
Um pássaro, um campo...um grito - uma pena flutua incerta. Havia talvez duas a três flores que choravam num lugar outro. E há, vejo, um abeto que ri desenfreadamente.
A melancolia espalha-se pelo vento solidário. A nostalgia, eterna irmã, emaranha-se num fio contínuo de lembranças desconexas.... A descontinuidade dá-lhe uma credibilidade suspeita
- diz-se da rotina andar de mãos dadas com a morte madrasta. O fluxo deve ser descontínuo para ser pertinente.
...farto de todos estes ruídos desconcertantes saio do bucólico para dentro de mim - fecho os olhos e espero a visita da clarividência. Encho-me de tudo e dirijo-me por fim para algures onde realmente me sinto imperecível.

18 de fevereiro de 2009

nmt2 *

o que eu precisava agora era de um copo de whiskey mas daquele puro sem sinais de stop e luzes vermelhas a interromperem a condução deste ritual de fim de noite. precisava de um copo vazio mas transparente de modo, a que, de qualquer ponto da sala, consiga ver com exactidão o que está por detrás do vidro. sim, não precisa de ser de cristal. vidro do mais rasca, mas transparente. (pausa)

é assim como o povo se sente. precisado, simples mas condicionador. cada um de nós é um peão neste grande jogo que é a vida. (pausa) nada de novo. rigorosamente nada de novo. se for possível, traz-me o jornal quandoas notícias forem outras. ah! e de preferência sem gralhas. e põe-no debaixo da porta para não ter de me cruzar contigo.

amanhã vai-me apetecer esbofetear alguém para de seguida o abraçar. apetece-me fazê-lo todos os dias. mas nunca o faço.quase nunca o faço. nunca o faço. faço. agora. agora que estou a descrevê-lo, a imaginá-lo. é só assim, aqui e agora, desta maneira muito particular em que condenso e exponencio o quase para algo quase concretizável. persegue-me, como a minha decadente estrada por estar corrupta e cheia de receios nas falhas do chão.

às vezes fico parada a olhar para as pessoas na cidade. saio de casa, esqueço as listas de afazeres e permito-me assistir de bancada a esta indiferença que me prega rasteiras de vez em quando. e às vezes também tiro notas, tiro o meu bloco e aponto... muito pouco. fico só a observar os passos cronometrados que as pessoas dão. acho que se estivessem cegas não se enganariam no número de minutos que têm de percorrer. chego mesmo a crer que encaram as outras pessoas como uma espécie de obstáculos que têm de evitar. é isso. nós somos obstáculos uns para os outros. e muitas vezes também somos pontapeados em vez de evitados. não sei o que hei-de achar. se se ser pontapeado será melhor que ser evitado. o primeiro implica contacto e sentimento. o segundo é virgem de sentido...

o que me remete para o whiskey que é puro, virgem. ou, pelo menos, deve sê-lo assim.
(pausa)

não, eu não bebo.

mas a sensação que tenho é a de que bebemos todos... muito pouco uns dos outros.




* Escrito para o evento "Não me toques!" (29 e 30 de Janeiro, 2009), Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Não me toques! - uma sociedade de tangências - link

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Nota: A ausência de textos deve-se a variados factores, mas redimo-me assim com este que é talvez o mais cultural de todos os que já publiquei aqui.


Maria Rocha , 2009

12 de fevereiro de 2009

»«

Sento-me e vejo o dia passar… e o que é que se aprende com isso?
Que um dia tem 24 horas, sensivelmente. E demoram, precisamente, 24 horas e pouco a passar.

...

11 de fevereiro de 2009

tessitura da Desilusão

Dois fios apresentam-se paralelos, fazem-se acompanhar por pequenas pedras sobrepostas. As pedras entreolham-se surpreendidas com a insolvência das linhas que se recusam a permanecer apáticas. O horizonte apresenta-se enigmático e as linhas, desenvoltas, apressam-se a descobrir esse enigma, crêem que seguindo em direcção ao fim que não vêem, alcançarão a quimera. As pedras permanecem mudas, as suas opiniões e reflexões fazem-se com o silêncio amigo da prudência. Zelam elas pela pacatez da quietude conquistada. Não obstante, as linhas querem empreender, fartaram-se de seguir o mesmo curso e já sentem a apatia desfazer-lhes as vísceras.

Ignorando as pedras galgam tudo em busca desse horizonte promissor. A viagem é atribulada, chovem vitupérios de todos aqueles que, constantes, são felizes.

Riem! – os pássaros que, sabendo o que esconde o horizonte, aguardam para ver o desfecho de tal determinação.

As linhas olham as mesmas pedras repetirem-se, notam um céu que lhes parece imutável, desconfiam de algo mas continuam a olhar o horizonte como se nada mais houvesse.

Demorará ainda uma eternidade sobre uma eternidade maior até que as linhas, desalentadas, olhem para baixo e reparem na impossibilidade do seu intento. Há muito que foram pregadas ao chão e os seus trajectos delimitados a caminhos delimitados pelo Homem.

Desiludem-se, conformam-se e continuam, por fim, a levar as enormes caixas aos mesmos destinos de sempre, acompanhados pela troça de agora.

10 de fevereiro de 2009

concurso literário.

9 de fevereiro de 2009

novo capítulo.

- as pessoas perdem-se da sua fé porque deus abandonou-as.
- ou a fé perdeu-se a si própria e o seu sentido no momento em que as pessoas abandonaram deus. não podes criar um monstro, deixá-lo entregue a si, não acompanhar o seu crescimento e esperar que ele ainda te sirva quando se tiver tornado absolutamente independente da sua relação contigo.
- e eu que passei a vida edificando deuses. atribuindo um significado específico e grandioso a cada um deles, lutando até lhes dar vida, orgulhoso de poder ver a sua luz a brilhar por muito distante que me encontrasse.
- e esses teus deuses de que sempre te gabaste - todos os teus paradigmas existênciais materializados em relações, em rostos para os quais apontavas singularmente, em projectos que nada mais eram que projecções dos recantos mais obscuros do teu ego - que cadeirão reservaram para ti nos seus tronos, em que núvem te é permitido flutuar nos seus céus, quantos metros quadrados estão em teu nome nos seus montes olímpos?
- acho que é como toda a questão de nietzsche sobre como deus morreu. não lhe podemos cobrar um poder para nos salvar, quando nós nem sequer tivemos a força, ou presença, suficiente para o mantermos vivo.
- mas os teus deuses não morreram, senhor victor frankenstein, olha à tua volta: há monstros que devoram, que esgotam, que sujam, que cagam para cima de cada bocadinho do teu mundo. e cada um deles tem em si as tuas impressões digitais, o teu toque, algo teu. e eu noto o embaraço com que tu os observas, a distância a que te manténs, a desilusão que se apodera de todos os teus traços visíveis. pois tudo o que vês são espelhos partidos, que não te devolvem a ti mas a fragmentos do que era suposto teres vindo a ser um dia.
- provavelmente, o único monstro em toda esta história sou eu. e eles não passam de aberrações que não tiveram sorte na herança genética que os acompanha desde o nascimento.
- mas eles só são aberrações se vistos através das lentes distorcidas das tuas expectativas. na verdade, em tudo o que construíste, a intuição nunca te enganou, os princípios eram sempre os melhores possíveis. não houve um único filho teu que não brilhasse, e que não tenha continuado a crescer mesmo depois de ter saído de casa. e tu, não és o monstro, no fundo, não passas um velho esgotado ainda na tua juventude. foste, todos estes anos, simultaneamente, o útero que deu vida aos teus sonhos e a faca que cortou o cordão-umbilical que te ligava a eles. agora, precisas de cortar o cordão que te liga a ti próprio, reinventar-te, morrer e ser enterrado num quintal. renascer e, um dia, germinar como uma laranjeira pronta a dar vida a nova fruta.

27 de janeiro de 2009

O fim

Incrível, como tudo aconteceu da maneira que eu imaginei. De facto, “o tempo destrói tudo”. Evolui-se, cresce-se de uma forma tão imprevísivel e inimaginável que um dia sabemos que melhor vai ser impossível. Lembro-me perfeitamente de um dia olhar para o amontoado de pessoas que tinha à minha volta ( uns trabalhavam na mesma causa, outros tentavam atrapalhar a causa, outros proporcionavam bom ambiente à nossa causa e outros apenas estavam lá porque era lá que queriam estar ) e pensei que esse era o momento que eu podia definir como o pico, o auge de todas as boas sensações e boas vibrações que eu iria sentir na vida.
Nós sentimos, nós criamos um monstro que nos transcendeu, um monstro que ganhou vontade própria. Criamos laços que nunca imaginámos que fossem possíveis de criar. O monstro protegeu-nos, encaminhou-nos e mostrou-nos o caminho. Protegidos, sentimo-nos orgulhosos, sentimo-nos grandes, sentimo-nos únicos.... e fomos. Nós sentimos. Mas o que também sentíamos era que esta causa e este monstro à medida que cresciam e que evoluiam, arrastavam nos por um caminho sem retrocesso, um caminho que nos iria conduzir à angústia. Angústia esta que iria obrigar a colocar-nos sempre a mesma questão: o preço que pagamos por atingirmos o sublime não será demasiado alto? Não será demasiado exigente para meros mortais como nós? Não estaremos apenas a seguir o caminho da auto-destruição?
Bem... chegou, a hora, chegou o momento, chegou a fatídica realidade. O monstro e a causa tornaram-se mitos, nós tornamo-nos nos responsáveis de tal proeza e no fim ganhámos a angústia. Nós sentimos essa angústia.... Acendo agora o meu irónico último cigarro, que se traduz no último prazer que herdei de tamanho império. O cigarro acabou...afinal apenas herdei a angústia e esta não desaparece. Estou a olhar para o espelho e reparo que a única coisa que está a desaparecer sou eu.

14 de janeiro de 2009

terrível romeu

Ontem acabei de reler o Romeu e Julieta e deparei-me com algo muito curioso...Já repararam que a imagem que temos de Romeu é de um jovem honrado, doce, apaixonado? E já pensaram em como essa concepção não podia estar mais longe da verdade? O Romeu com que me deparei é tudo menos honrado, doce ou bom partido. A única verdade é que está apaixonado, mas até dessa paixão desconfio. Digam-me lá, como é que é possível que alguém se apaixone, a ponto de se suicidar, após um primeiro olhar? Nem sequer me falem de amor à primeira vista porque todos sabemos que isso não existe e, até temos outro nome para isso: tesão! Portanto, aceito que me digam que ele sente uma enorme tusa pela virgem(será?) Julieta. À parte disso, falemos da apetência natural de Romeu para matar e como essa veia assassina é completamente esquecida por quem olha com olhos ingénuos para a tragédia de Shakespeare. Um homem que se diz perdidamente apaixonado passados dois minutos de conhecer uma virgem, mata o primo dela e como se isso não bastasse, e para morrer mais descansadinho, ainda mata o pretendente de Julieta antes de ceifar a própria vida, será MESMO um homem bom e um romântico incondicional? Não será esse homem um tarado sexual do renascimento? Não será, por último, extremamente estúpido considerar a história de Romeu e Julieta como o paradigma de um grande amor. Peço-vos que me iluminem com as vossas opiniões que sinto já todo o meu sistema de crenças desfalecer num ápice.

9 de janeiro de 2009

nada de jeito

A brisa da manhã soprava supérflua. Era o esbatimento natural de um espectro de loucura. O vento há muito que estava angustiado e o seu soprar assemelhava-se a um choro fúnebre. Chorava a morte da virtude do homem enquanto via a sua honra se diluir em pretensos textos apaixonados. Em vez de entrar numa espiral apologética de qualquer trauma pueril prefiro escrever disparates e nada dizer. Escrevo os disparates, não porque seja esse o ímpeto mas porque me fartei de ouvir ruídos constantes...sim, vocês sabem quem são. Contudo, creio que nada escreverei hoje....lamento não ter a inspiração devida ou tão pouco vontade. Abraço para os meus meninos.

2 de janeiro de 2009

Precipício ou Partida.

Cheguei. De onde não interessa e onde cheguei também não. O intrigante será mais o que mudou e o que não mudou. O que não mudou é algo que não é preocupante, já o era assim antes de chegar, por isso não me chateia. O que mudou...bem, isso já é algo preocupante. Cheguei a um mundo onde está tudo virado ao contrário. Os falsos amigos tornaram-se amigos verdadeiros e os verdadeiros tornaram-se falsos. As paixões caíram num estado de ignorância em bruto e revelaram-se complicações sem fim emaranhadas em filmes psicológicos que não interessam ao menino Jesus. As certezas....essas nunca existiram, mas agora nem provisóriamente posso acreditar em algo.
Pondero sobre a minha vida e fico com dúvidas quanto ao meu futuro. Dúvidas essas que crescem a cada dia que passa. A minha vida tornou-se num monte cheio de merda onde de cada vez que tento limpar a merda, a única coisa que faço é espalhá-la de uma maneira ainda mais nojenta.
Daí pergunto-me, será que estou perto do precipício, ou será que estou perto do ponto de partida de uma vida de merda?
Seja qual for a resposta, nenhuma é positiva para mim. Vejo um futuro negro.

Adapto Voltaire a um contexto diferente mas com as palavras apropriadas para a argumentação sobre a minha vida.
Conclúo que ponderar sobre a minha vida é como " encontrar num quarto escuro, um gato preto que lá não está". ( Voltaire )

a viagem.

"ticket in my hand and thinking wish i didn't hand it in.

'cause who said sailing is fine?
leaving behind all the faces that i might replace if i tried on that long ride,
looking deep inside but i don't want to look so deep inside yet".

há sempre um motivo por trás da viagem.
até hoje, justificava-a com o desejo de partir.
de, em vinte minutos, decidir tudo o que seria indispensável,
enfiá-lo num saco, e desaparecer.
sentir um peso a cair-me lentamente das costas, do olhar, da consciência,
a cada quilometro que me afastava, a cada traço que via mudar na paisagem.

desta vez, porém, a vontade é de permanecer. manter-me nestas ruas, nestes cafés,
que de alguma forma me fazem sentir próximo, confortável.
aqui não há silêncio, antes um diálogo constante com o exterior.

como a rua de cedofeita, por exemplo,
que é habitada por um casal de fantasmas.
tal como a da torrinha.

um deles é em tudo igual a mim, do nariz para baixo.
só não lhe reconheço a zona do olhar, demasiado distante daquela que encontro num espelho.
o outro é inconstante,
preocupa-se demasiado com pequenas coisas que não deveriam interessar a fantasmas,
passa a vida a falar de sapatos, por exemplo,
se são os que melhor condizem com o vestido, com a estação,
com os carros que estão estacionados,
se são os sapatos que melhor condizem com o universo.

às vezes passam por mim e sorrio porque vejo que são os dois fantasmas mais felizes do além,
ou, talvez não seja isso,
mas porque há definitivamente algo inominável naqueles vultos que não encontro em mais lado algum.

outras vezes caminham em paralelo, um em cada passeio,
a berrar um ao outro como dois atrasados mentais.
quer dizer, olhando com atenção,
só um é que realmente parece estar irritado,
o outro ora encolhe os ombros, ora se ri, ora amua e fuma um cigarro.
e nunca passa disso.

se não lhes conhecesse os nomes, chamar-lhes-ia peace & love,
como alguém certamente já lhes há-de ter chamado noutra vida,
por algum motivo semelhante.

sei que, quando partir, não os vou voltar a encontrar.
e as ruas vão deixar de falar.
os fantasmas eventualmente vão desaparecer, ganhar vida própria.
e o exterior vai deixar de ser um narrador, para se limitar a ser aquilo que me é externo.

e dizem-me que é esse o caminho.
que me devo rodear de carne e osso,
que devo comer como uma pessoa, dormir como uma pessoa,
sentir-me alguém, recuperar algo que a maria diz que se perdeu na zona do olhar,
viver neste admirável mundo novo e esquecer o outro.

é assim que, desta vez, o motivo para partir é a vontade de ficar.
porque fantasmas não respondem quando lhes falamos, quando lhes escrevemos.
porque, por muito que gostasse de acreditar que sim, não posso ter catorze anos outra vez.

porque, em resumo, por muito que seja confortável sentir-te sempre por perto aqui,
tu já cá não estás, nem sou eu quem está aqui, sentado no magnus,
a ouvir esta música, a beber um café, à espera de nada,

já não somos nós que estamos cá, de facto,
e isto tornou-se uma terra de ninguém.

tenho um bilhete para comprar, uma mala para fazer em vinte minutos,
e muito muito tempo para esperar que outras ruas me contem outras histórias.

dar um ponto-final definitivo a esta narração contínua
e começar por algo mais singelo, como um diário de viagem,
um poema,
ou ficar-me por um rascunho de qualquer coisa que me fale pelo caminho.