15 de abril de 2009

sanja.

I

ele morreu. e foi assim que fomos apresentados. « este é o meu amigo que morreu ontem num acidente de viação ». sobre isso, é tudo quanto sei, tudo quanto quis ou me atrevi a querer saber.
dizem que o silêncio antecede a tempestade e assim foi, tal e qual se diz. três dias de sossego em conjunto. três dias de cigarros sem palavras, olhares inexpressivos, rotinas subitamente sem significado aparente. até que, passadas essas setenta e duas horas, «o funeral é amanhã, ao meio-dia, vou partir daqui a três horas no primeiro autocarro, rumo ao primeiro comboio, com destino à última despedida». e deu três passos, até parar ao som de uma única palavra « espera ».
e esperou. ao fim de trinta minutos de espera eramos três, cada um com a sua mochila, a entrar num carro. ela semi-a-dormir, semi-desmaiada, estendida, no banco de trás. a outra a ligar o motor. eu a ligar o rádio, a escolher o primeiro dos seis álbuns que ouvimos nas sete horas que se seguiram. « ao fim de três dias sem comer e sem dormir, adormeceu », « está nas nossas mãos agora. enrola um e toma sentido às placas, que eu tendo a virar em tudo que é curva e é suposto seguirmos, nas próximas horas, sempre a direito ». sete horas volvidas, havíamos passado cinco fronteiras. quatro por necessidade, uma por distracção.

II

passaram quatro horas desde as sete que haviam passado anteriormente. trinta minutos nos quais nos sentamos à volta de uma mesa, com uma caixa de chocolates e uma garrafa-de-água, onde enrolamos os dois últimos da madrugada e trocamos algumas palavras já mal articuladas que terminaram em « podes então mostrar-me agora onde vamos dormir? » e, trinta segundos depois, « ok, boa noite, isto é, até já ».
três horas nas quais acordei de vinte-em-vinte minutos, o que resultou em nove sonhos distintos dos quais não sou capaz de recordar um único pormenor que seja.
os últimos trinta minutos dividiram-se em
vestir,
conhecer a outra habitante da casa que, entretanto, aparecera enquanto dormíamos,
tomar o pequeno-almoço em conjunto,
fumar quatro cigarros,
rodar um, o primeiro do novo dia, entre três dos quatro,
café,
fumar quatro cigarros,
ir, sair e esperar que os demais também fossem e saíssem do quarto-de-banho,
sair de casa.

III

foi então que nos vimos reduzidos a dois, novamente, eu e ela, como na noite anterior, no meu quarto, quando me disse « ligaram-me agora, o funeral é amanhã » e virou costas e caminhou até ouvir « espera ».
primeiro, fomos visitá-lo a casa. batemos à porta, a companheira de quarto abriu-a por ele. entramos e, logo, separamo-nos. elas entraram num quarto, abraçaram-se e choraram numa linguagem da qual dispensei qualquer tipo de conhecimento para as compreender. eu fiquei na entrada, a observá-lo através das portas abertas, disperso na espessura do ar, na arrumação desarrumada dos objectos, em frases escritas pelos papeis, pelos quadros, pelas fotografias, pelas paredes, escritas por todo o lado. sem necessidade de trocar palavras, estavamos juntos pela primeira vez, ao fim de três dias.
sobre ele, podia atrever-me a dizer, com certeza, o mesmo que qualquer um poderia dizer sobre um qualquer desconhecido: absolutamente nada. no entanto, não se tratava mais de um desconhecido. antes, alguém, agora, de alguma forma, inexistente, cuja existência passada passava a envolver-me. um envolvimento leve. de mim era apenas requerido estar presente, assistir, caminhar lado a lado, ser suporte, existir. estar presente, nada mais.
antes de irmos embora, ela fez questão de ir ao jardim do prédio. disse « ajuda-me a encontrar as pedras ».
o chão era, todo ele, composto por pedras. pensei em perguntar algo do género « quais pedras? » no entanto, limitei-me a caminhar em circulos, olhos no chão, à procura de qualquer coisa que fizesse sentido. no entanto, qualquer coisa apenas fez sentido quando ela as encontrou. duas pedras, que anteriormente havíam sido só uma que, entretanto, se partira, com algo escrito nelas, talvez desenhado, não cheguei a ver de perto, mais uma vez, foi tudo quanto me permiti saber, sem nada mais a perguntar. guardou-as na mala, limpou as lágrimas do rosto, e disse « ok, estou pronta, vamos ».

IV

o funeral. viajamos até uma aldeia nas redondezas durante cerca de quarenta minutos. a capela estava situada no cimo de um monte, no qual seguimos o trajecto da calçada, parando a meio para respirar, olhar à volta, fumar um último cigarro, trocar os últimos olhares, enfim, para respirar. na cerimónia encontravam-se cerca de cem pessoas, divididas em grupos que pareciam reconhecer–se mas cujos membros que não falavam entre si. ela quis ir para o fundo. ressalvar a dor de outros olhares que não os nossos, talvez. havia um monitor que mostrava, retrato atrás de retrato, um álbum fotográfico que tinha como função resumir a vida dele e que a fez sorrir e chorar num intervalo temporal tão curto que me pergunto, desde então, se o fez por esta ordem cronológica ou em simultâneo.
caminhamos em conjunto no momento da despedida. lado a lado, mão na mão. cada um com o seu ramo que, à semelhança de todos os outros, pousamos no caixão, já a dois metros do chão. ela murmurou qualquer coisa, para mim, para ele, talvez para ela própria, não sei, e cedemos a vez. voltamos à calçada, onde paramos a meio para respirar, para fumar mais um cigarro, esperar pelos outros e voltar para a cidade.

V

sentamo-nos na primeira mesa, da explanada, do primeiro café. vodka e café curto para recomeçar o dia. entretanto, a outra chegou para nos levar. de garrafa de vodka numa mão, garrafa de sumo de maçã na outra, « bem, eu vou conduzir, não posso beber, mas trouxe isto para vocês que devem estar a precisar ». algo assim do género.
fomos mandados parar pela polícia na primeira fronteira. passados dez minutos estavamos os três nos bancos da frente, eu e ela a partilhar o mesmo cinto de segurança, garrafa de vodka vazia no chão, cinquenta gramas de ilegalidade na mala, com uma paragem a meio da auto-estrada para tentar perceber se podíamos levar a cabine telefónica do s.o.s. para casa, a ouvir a rádio « magic brno – only hit songs », e a sorrir.
chegamos, levamo-la ao colo para o quarto, segurei-lhe nos cabelos enquanto oferecia a vodka e o sumo de maçã a uma retrete e, por fim, fumamos um de boa noite, sentados no chão do corredor, com as luzes apagadas, excepto as que nos chegavam da rua pela janela, felizes por a ver feliz, sabendo que não ia durar, que no dia seguinte iria acordar, sem nós, sem vodka, sem sumo de maçã, sem qualquer coisa para fumar, sem vontade de fazer qualquer uma dessas coisas, sem absolutamente nada excepto a certeza que não há mais como voltar atrás, que acabara de acordar para o pior dia da sua vida.

2 comentários:

Justino Estevão disse...

Estava a gostar tanto etu tibhas que ir e escrever explanada Srº Telmo?! EXPLANADA?!!!fodase...Fora isso, gostei muito do teu texto. Até dás vontade de escrever uma história, vou tentá-lo. Abraço

telmo disse...

opá, mal conseguia abrir os olhos quando estive a passar isso para o pc. fico orgulhoso de não ter mais calinadas, de qualquer tipo - se é que não tem - de tal forma que nem vou corrigir. :P

e sim, escreve e partilha. fico à espera, como já estava antes desta conversa.