29 de dezembro de 2008

Deixa-me pensar-te

Sobe-se uma rua íngreme e estreita, cheia de casas que parecem ter sido construídas com legos, umas mais altas que outras, de diferentes cores, mas todas demasiado encaixadas. Na primeira rua à esquerda, é aí que se tem de virar. Mal se possa, vira-se à direita e mais uma vez se sobe uma outra rua tão íngreme e estreita como a anterior, ainda assim, tem dois sentidos. Aí, precisamente aí e não noutro sítio qualquer há o portão verde. Antes tinha outro, mas estava recheado de ferrugem, sendo que a cereja em cima do bolo eram os buracos que deixavam ver uma quinta decadente.

Lembro-me de flectir as pernas, segurar-me com as mãos nas partes mais limpas do portão e espreitar a rua feita de paralelos, as árvores já meio desgastadas, se for possível chamar-lhes assim. É que o cheiro a vida era intenso, mas mais ainda era o cheiro da velhice.

Primeiro que chegasse a tua casa tinha muitos medos para ultrapassar, o das cobras que pudessem aparecer, o das ovelhas que por lá andassem, das galinhas e dos seus bicos. Tinha um rol de escadas de pedra já pouco seguras. Até que, a uma escada do fim tinha umas mãos enrugadas: com o olhar percorria-lhe os braços, os ombros e chegava ao brilhante sorriso. Descia e encontrava o avental, por detrás dele o corpo largo, coberto de texturas que o meu queria sentir. E assim nos abraçávamos.


A mesa, os bancos, a hora do chá, as tardes estendidas pelo ponteiro das horas. E o Gato, sempre lhe chamei Gato ainda que não houvesse novelos de lã, cortinas rasgadas ou sofás arranhados. Nem tampouco bolas de pêlo na garganta. Sempre foi esse o seu nome ainda que fosse um cão. Sempre soube saltar para o sítio certo.

Todos os Domingos eram assim na tua casa.


Subitamente, os papéis inverteram-se. Eras tu que me visitava. Olhei o relógio, marcava as 04:15. Só o Gato tinha ficado em casa. Não sabia que essa era a hora de caminhar para a morte. Nem sabia que as pilhas do meu relógio teriam de durar mais dois meses para que, por volta da mesma hora, a tua vela se apagasse.


Quem soprou sem que fosse o teu aniversário?

Ficou o fumo para te sentir, te lembrar.



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Ainda que as minhas memórias sejam diferentes das do Gato, juro não saber a quem dói mais. Desde que me visitaste até que te foste, pude acompanhar-te de perto, segurando a tua mão mesmo que os teus olhos se mantivessem fechados, sei porque morreste ou pelo menos sei que é esse o motivo para que te tenha deixado de visitar. E o Gato?

Já não chegava ter sido abandonado por mim uma vez, quando combinei contigo deixá-lo a viver em tua casa, por ter mais espaço e companhia, não… novamente sozinho. De cada vez que o olho nos olhos, de cada vez que vejo o pêlo queimado das lágrimas, arde-me o peito. Eram 04:15 da madrugada quando desapareceste para ele e, nunca… nunca mais voltou a ver-te.

Entre nós há uma diferença de verbos: enquanto que eu não acredito que morreste, o Gato não o imagina. Talvez viva eternamente à tua espera no cimo das escadas. Eu digo apenas que nos encontraremos noutra vida quando formos gatos.

1 comentário:

telmo disse...

por mim, acho que é exactamente aqui que deves estar.

sempre que aparece algo teu, parece que voltei ao secundário e que acabaste de me mandar um texto pelo msn. a admiração tem-se mantido constante até hoje.